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As queridíssimas Teatraviesas - Grupo de Teatro dos Oprimidos e das Oprimidas. Barcelona, 2009. |
- Iê, iê, iê, iê ao longo dos anos me transformei!
Madalena (santa ou puta, puta ou santa?) veio flutuando pelo ar como espírito de busca que declarou-se ser – veio ter com o grupo de mulheres que lhe havia chamado. Madalena foi convidada a contar sua história no centro de um círculo dos bonitos olhos das mulheres ouvintes. Ao redor da mulher milenar, as Madalenas suspiravam de surpresa percebendo que à medida em que a história se desenrolava, o rosto de Madalena ia se tornando cada vez mais parecido com o de cada uma, até um ponto em que já não sabiam se estavam em círculo escutando ou se as palavras que ouviam não haviam mesmo sido pronunciadas por elas mesmas.
As mulheres criam seu espaço próprio de discussão e ação, elas criam uma nova espécie de irmandade, onde demonstram a importância da amizade como suporte emocional que nutre a causa da emancipação feminina. “Sisterhood is powerful” como movimentos feministas já afirmaram referindo-se à importância da amizade entre as mulheres em uma sociedade onde as mesmas são ensinadas a se verem como inimigas naturais, competindo por um homem, incapazes de confiar umas nas outras. Citando Eliane Gonçalves (2009, p.207): o sentido atribuído a “sisterhood” é curioso se pensarmos seu genérico englobante “brotherhood” termo que melhor define a camaradagem e a fraternidade entre homens livres e iguais, um conceito falogocêntrico de amizade, segundo Jacques Derrida (1997).
As Madalenas agora se reúnem para criar este espaço tão especial – nós estamos plantando sementinhas através do processo de multiplicação em todo o país, estamos plantando, através do Teatro do Oprimido, a reivindicação da identidade feminina. Desejamos, para citar a famosa psicanalista Clarissa Pinkola Estes, “ser jovens enquanto velhas e velhas enquanto jovens”, pois as Madalenas são seres plenos capazes de aprender com mulheres de todas as faixas etárias, classes, cores, nacionalidades – através e contra qualquer tipo de segregacionismo utilizado para nos confundir e/ou insinuar desconfiança entre as almas femininas. Portanto, a velha lenda de que as mulheres não sabem se unir, já está sendo superada pois agora temos a chance de entender e agir contra os motivos da desunião entre as mulheres, agir contra todo e qualquer tipo de violência praticada contra as mulheres – o Teatro é a nossa grande arma
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Marias&Madalenas - Teatro das Oprimidas em Brasília, 2011. |
- Em defesa de um Teatro das Oprimidas
No Brasil, vários grupos de Teatro do Oprimido registraram repetidas vezes a emergência da temática da violência contra a mulher em trabalhos realizados ao redor do país. É a temática que mais se repete, a partir de relatos reais de mulheres que se expõem para falar publicamente sobre o tema. A metodologia do Teatro se mostrou assim um importante instrumento para tirar da obscuridade do privado a questão da violência física e psicológica contra a mulher, trazendo ao âmbito do público e indicando que, mesmo e apesar de todas as leis já existentes, as mulheres continuam sofrendo de violência e calando-se.
Dados da pesquisa “A mulher brasileira nos espaços público e privado”, indicam que praticamente a totalidade das mulheres investigadas só percebem a violência urbana. A violência de gênero, a violência contra as mulheres, a violência doméstica e a violência intra-familiar, passam despercebidas. O que nos sugere o quanto ainda se faz necessário, dentro das políticas de igualdade de gênero, a criação e aplicação de mecanismos que sejam capazes de desvelar a violência e desnaturalizá-la no âmbito das relações privadas. Acaba por emergir também a comprovação de que a violência é sistêmica, ocorrendo nas distintas esferas da vida pública e privada, o que nos faz refletir na precariedade ainda existente em termos de compreensão e ação contra o fenômeno por parte das instituições políticas e associações civis. Ou seja, a dificuldade de tratar politicamente do tema dentro de uma tradição cultural que crê que “problemas de marido e mulher se resolvem em casa”, na cama ou onde melhor lhes convir. E o que se vê diariamente é que esses problemas seguem acabando em morte ou em traumas psicológicos profundos.
O problema ainda é o da negação desta “Outra”, ser feminino, diferente do ser masculino. A negação da alteridade. A essencialização da diferença como inferioridade – tema que os autores e autoras latino-americanos das teorias da descolonização têm tratado com especial atenção. A liberação da mulher deve ser parte integrante e inolvidável do projeto de liberação da humanidade. A liberação feminina deve atuar junto contra todas as formas de negação da Alteridade, da exterioridade da qual fazem parte não somente as mulheres, mas os negros, os indígenas, os mestiços, e a população pobre.
A defesa de um “Teatro das Oprimidas” já é realizada por distintos coletivos de mulheres: um teatro que efetivamente contribui para a formação política e a superação das opressões através da ação coletiva. Essa é a prática que defendemos ao longo deste texto: a prática de um teatro comprometido com um projeto político de liberação, não somente das mulheres, mas de negros, pobres e indígenas. Contribuindo para a descolonização das subjetividades delas e deles, os oprimidos. Enfim, para a construção de um conhecimento mais compartilhado e acessível à diversidade, lúdico, mas, sobretudo, político!
- Bibliografia
DERRIDA, J. Politics of friendship. London: Verso, 1997.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. A ciranda das mulheres sábias; tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 2007
GONÇALVES, Eliane. Nem só nem mal acompanhada: reinterpretando a "solidão" das "solteiras" na contemporaneidade. Horiz. antropol., Dez 2009, vol.15, no.32, p.189-216.
VENTURI, G.; RECAMÁN, M.; OLIVEIRA, S. (Orgs.). A mulher brasileira nos
espaços público e privado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.